(Ana Maria NICOLACI-DA-COSTA; Mariano PIMENTEL)
PDF do Capítulo
[versão para impressão]
Vivenciamos uma revolução social, a Revolução da Internet. Os computadores em rede, desenvolvidos a partir da metade do século passado, rapidamente se disseminaram por todo o sistema social e, desde então, vêm provocando profundas transformações em todos os setores da vida contemporânea. Um sistema colaborativo se constitui num ciberespaço, que é o espaço de convivência da nova Sociedade em Rede, um espaço para as interações humanas que possibilita vivenciar experiências intensas e tem grande poder de atrair e manter frequentadores. O novo ser humano é digital, deixa de ser reconhecido somente por sua aparência física e passa a ter sua identidade vinculada a um perfil, um endereço de correio eletrônico, um nickname, um avatar. O ser humano do século XXI tem novos comportamentos, novos estilos de ser e agir, lê e escreve de forma diferente, desenvolveu novas formar de pensar e aprender, de se relacionar com amigos e de amar. É para esta nova sociedade e para este novo ser humano que os sistemas colaborativos devem ser projetados. Devem criar espaços para serem habitados, devem possibilitar novas formas de trabalho e de interação social.
META
Discutir as mudanças decorrentes da Revolução da Internet e as características da nova Sociedade em Rede e do novo Ser Humano Digital que devem nortear a visão dos projetos de sistemas colaborativos
OBJETIVOS EDUCACIONAIS
- Caracterizar as transformações decorrentes da Revolução da Internet: o Ciberespaço, a nova Sociedade em Rede e o novo Ser Humano Digital;
- Analisar sistemas colaborativos considerando as características da nova Sociedade em Rede e do novo Ser Humano Digital.
1.1 – Revolução da Internet: uma nova sociedade
Nós, homens e mulheres do novo século e milênio, estamos sofrendo os impactos de uma profunda transformação na sociedade contemporânea decorrente da interligação dos computadores em rede, a denominada Revolução da Internet, também conhecida por outros nomes como Revolução Digital ou Revolução Informacional.
Uma revolução é caracterizada por uma inovação que provoca descontinuidade nos mais variados setores da vida em sociedade: nos modos de produção, na organização social, no espaço de convivência, nos estilos de agir, viver e ser. Em sua origem, os seres humanos sobreviviam da caça e da coleta, eram tipicamente organizados em pequenos grupos, tribos frequentemente nômades. Com a Revolução Agrícola resultante do desenvolvimento da técnica do cultivo, o ser humano se fixou em aldeias e domesticou animais. A Revolução Industrial, gerada pelo desenvolvimento da energia a vapor e elétrica, possibilitou o surgimento das indústrias, das grandes cidades, do capitalismo e do indivíduo. Agora presenciamos outra revolução. A Revolução da Internet está sendo uma consequência da difusão das tecnologias associadas à criação dos computadores na década de 1950, das redes de computadores no final da década de 1960, da popularização dos microcomputadores na década de 1970 e 1980, da disseminação mundial da web na década de 1990 e das mídias sociais na primeira década do presente século.
Novas tecnologias promovem alterações de comportamentos e hábitos da sociedade. Antes da energia elétrica, a família se reunia ao redor do piano; depois da energia elétrica, o piano foi substituído pelo rádio e posteriormente pela televisão. Algumas tecnologias têm impactos bem mais profundos, pois, além de alterar hábitos e formas de agir, podem gerar transformações nos nossos modos de ser: como pensamos, como percebemos e organizamos o mundo externo e interno, como sentimos, como nos relacionamos com os outros e com nós mesmos. A rede de computadores é uma dessas tecnologias com poder revolucionário, está gerando profundas alterações em praticamente todas as áreas da experiência cotidiana de seus usuários, está tornando possível a emergência de uma nova era.
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, DO CONHECIMENTO, EM REDE, CONECTADA OU DA COMUNICAÇÃO?
Alvin Tofler, um dos estudiosos das mudanças sociais de nossa época, publicou a trilogia best-seller: Choque do futuro (Future Shock, 1970), A terceira onda (The Third Wave, 1980), e Powershift: As mudanças do poder (1990). De acordo com o autor, a primeira onda foi provocada pela revolução agrícola, a segunda foi a revolução industrial, e a terceira onda estaria sendo provocada pelo Conhecimento decorrente das necessidades instauradas pelo industrialismo; para o autor, o Conhecimento é o capital da nova sociedade. Contudo, na época em que escreveu o livro “A Terceira Onda” (Tofler, 1980), a internet ainda não era acessível à população em geral, ainda não havia se tornado um grande fenômeno social.
A sociedade recebe o nome que caracteriza a riqueza de sua época, pois a alteração na forma de produção modifica as relações de trabalho e gera profundas mudanças sociais, culturais e políticas. Inicialmente, a sociedade atual recebeu o nome de “Sociedade da Informação”, mas este termo está caindo em desuso porque hoje se percebe que Informação não é a fonte de riqueza, atualmente as pessoas querem compartilhar a informação com todos, ter mais informação não é o que caracteriza um país rico. Ainda não é consensual o nome que melhor caracteriza a sociedade contemporânea: Sociedade do Conhecimento, Sociedade Conectada, Sociedade da Comunicação, Sociedade em Rede (Drucker, 2002; Castells, 1999). Discuta com seus colegas qual é o nome mais adequado para caracterizar a nossa sociedade contemporânea.
Alguns veem o surgimento dos computadores e das redes como semelhantes ao aparecimento de inúmeras outras tecnologias ao longo do século XX. Não acreditam que a rede de computadores esteja gerando consequências muito mais radicais do que as demais tecnologias que fazem parte do nosso dia a dia. Contudo, mesmo as tecnologias de maior penetração criadas no século XX – como o rádio, o cinema, a televisão, o automóvel ou os aviões – não tiveram o poder de criar um espaço de convivência como o inaugurado pelas tecnologias de informação e comunicação, no qual se desenrolam as mais variadas formas de interações e dramas humanos com grande potencial para transformar a vida em sociedade.
NOVOS VOCÁBULOS
Com a Revolução da Internet, novos vocábulos foram criados e antigos termos adquiriram novos significados. Novas palavras e expressões, que registram e dão alguma concretude às mudanças desencadeadas por um momento revolucionário, são necessárias para dar conta de uma nova realidade, para expressar novos interesses, necessidades, relacionamentos, conflitos etc. Com o advento dos computadores pessoais e da Internet, ocorreu uma proliferação de termos e expressões antes inexistentes ou com significados diferentes: windows, menu, copiar e colar, deletar, formatar, configurar, rede, www, web, web 2.0, web social, tempo real, realidade virtual, e-mail, spam, navegador, mecanismo de busca, groupware, CSCW, sistemas colaborativos, bate-papo, blog, wiki, redes sociais, mídias sociais, ciberespaço, cibercultura, democracia digital, mobilidade, ubiquidade, pervasividade, computação nas nuvens, entre milhares de outros termos.Os novos conceitos, úteis para interpretar a nova realidade, introduzem alterações substanciais nas antigas concepções de espaço, realidade, escrita, tempo, relacionamento. A forma de pensar dos usuários sofreu muitas transformações, pois eles absorveram a nova lógica da rede, uma lógica de excessos, agilidade, integração, relativização e expertise jovem. Uma vez absorvida, essa lógica também é transportada para o mundo off-line e produz alterações também nos modos de agir e de ser dos sujeitos.
A descontinuidade com a ordem precedente introduzida pela Revolução da Internet é apenas comparável àquela instaurada pela Revolução Industrial. Esta última, todos sabemos, foi radical, acelerada e desorientadora. Gerou um grande aumento de produtividade com a substituição do trabalho humano e da força animal pelas ferramentas mecânicas e energia inanimada. Só para dar um exemplo, no setor de tecelagem, os primeiros teares movidos a vapor produziam 20 vezes mais do que um trabalhador manual, as primeiras máquinas para fiar movidas à energia tinham 200 vezes a capacidade da roca. A vida em sociedade também foi radicalmente transformada: o modo de vida feudal dominante no século XVIII foi substituído pelo modo de vida capitalista que passou a vigorar no século XIX. Tudo aconteceu tão rápida e abruptamente que muitos se sentiram ou aterrorizados e nostálgicos, ou intoxicados e excessivamente otimistas frente às transformações que presenciavam.
A Revolução da Internet e a Revolução Industrial têm algo em comum: uma inovação tecnológica e a sua rápida disseminação por todo o sistema econômico e social. É exatamente por esse motivo que, tal como a Revolução Industrial, a Revolução da Internet também está ocasionando profundas transformações sociais.
1.2 – Ciberespaço: um novo espaço de vida
Com a Revolução Industrial, as recém-implantadas formas de produção rapidamente deram origem a novas formas de organização social que se desenrolavam em um novo espaço: o dos grandes centros urbano-industriais, nos quais haviam se instalado as primeiras fábricas. Essa foi uma mudança visível e impactante. O urbanismo rapidamente se tornou um dos principais temas de interesse de grandes pensadores do século XIX e início do XX. A cidade – centro econômico, político e cultural – atraiu os camponeses das localidades mais remotas, tornou-se o novo espaço para a moradia, o trabalho e a sociabilidade do homem moderno.
As atuais redes de computadores também geram um novo espaço, constituído por circuitos e impulsos eletrônicos, que dá suporte a novas práticas sociais. Este espaço foi convencionalmente chamado de “ciberespaço” (termo originalmente cunhado pelo novelista William Gibson em 1982, cujo significado foi alterado posteriormente).
“METROPOLIS”
Filme de ficção científica, dirigido por Fritz Lang na década de 1920, registra o grande interesse pelos novos espaços urbano-industriais despertado no início do século XX. O filme foi relançado em 2010 após ter sido restaurado e de serem acrescentados mais de 25 minutos de metragem após a descoberta de uma cópia do filme original, em 2008, no Museu do Cinema na Argentina. Assista ao trailer disponível na web:
A partir das telas dos computadores, que servem de plataforma e via de acesso ao ciberespaço, é possível experimentar formas de viver e conviver nesse novo espaço. As experiências nele vividas são atraentes, reais e intensas. É surpreendente o poder que o ciberespaço tem de capturar, cativar e manter frequentadores. O ciberespaço está para a Revolução da Internet assim como a metrópole está para a Revolução Industrial. Ambos foram o resultado de transformações sociais introduzidas por desenvolvimentos tecnológicos.
Na primeira década de popularização da Internet, entre meados da década de 1990 até meados da década de 2000, era comum estabelecer comparações entre “mundo virtual” e “mundo real”, discutir os limites e as influências entre esses mundos que pareciam disjuntos. Já na década de 2000, as tecnologias e os novos conceitos evidenciaram a integração do virtual ao real. As pessoas não vivem mais a dicotomia de estar ora habitando o virtual e ora o real, pois estes estão tão imbricados que se tornou difícil perceber quando se está numa situação ou em outra. As pessoas precisam se esforçar muito para ficarem off-line, precisam se isolar de tudo, da energia elétrica e dos celulares. Ainda existem refúgios, mas estes espaços e sociedades alternativas não caracterizam mais a sociedade conectada do século XXI.
Na década de 1990 as pessoas usavam pseudônimos para se relacionar por bate-papo com aqueles que também haviam se tornado usuários da internet, nem precisavam se conhecer no “mundo real”, interagiam por horas em frente a uma tela de computador de mesa que levava ao isolamento do resto do mundo físico – tal como ocorre quando se lê um livro por horas a fio. Já o início da década de 2010 é marcado por sistemas como Facebook em que as pessoas se identificam com seus dados reais, se expõem com foto e tudo, e usam os sistemas para se manterem conectadas aos amigos, familiares, colegas de trabalho e demais conhecidos. A interação é contínua, ao longo de vários momentos do dia, seja pelo celular ou outro computador móvel. Um evento interessante é motivo para tuitar e tornar a notícia compartilhada com todos, e basta um só minutinho. A foto tirada na praia é compartilhada na rede social. O SMS entrega a mensagem que divulgaram na sua rede de relacionamentos. Eu estava no ciberespaço naquele instante em que estava lendo a mensagem na tela do meu celular? Nem havia percebido. Não há mais uma clara fronteira entre o digital e o real.
Termos como internet das coisas e computação ubíqua, ou pervasiva, nos fazem perceber que o ciberespaço está espalhado à nossa volta: no celular, no carro, na televisão, nos eletrodomésticos. As coisas ficaram inteligentes: casa inteligente (domótica), roupas inteligentes (wearables) e todo tipo de coisa começa a ser projetada para que a inteligência computacional apoie e expanda o uso do objeto, de maneira integrada e discreta nas coisas do cotidiano. As coisas estão conectadas entre si e em rede. Os objetos estão sensíveis ao toque e aos movimentos do usuário, o corpo físico passou a ser considerado pelos sistemas (interface tangível, háptica). Proliferaram os sensores para obter os mais diversos tipos de dados sobre o ambiente e assim o sistema passou a considerar a realidade ao redor do usuário. O GPS embutido no celular detecta o local físico em que o usuário se encontra, e o resultado da busca na web depende do local e de outras informações contextuais. O digital está aterrado no real, espalhado ao nosso redor, tornou-se tão cotidiano e integrado que muitas vezes nem mais notamos a diferença entre o local e o ciberespaço, entre o real e o virtual; entre o analógico e o digital, entre o off-line e o conectado. Vivemos num mundo híbrido.
“MUNDO: PLANO OU PICOS?” (MEIRA, 2010)
Ao contrário do que se poderia supor no início da popularização da Internet, o lugar-físico não desapareceu por causa do ciberespaço. Em nossa sociedade em rede, o mundo físico não se tornou “plano” como se não importasse o lugar onde você está, seja na área rural ou em qualquer parte do mundo. O mundo ainda é cheio de “picos”, arranha-céus onde o conhecimento, os trabalhadores e os fluxos são muito mais densos. Se o lugar não importasse, as pessoas não continuariam a se mudar para os lugares densos onde há mais oportunidades. As redes mudaram o mundo, mas não ao ponto das redes se tornarem o mundo. As redes abstraem, estendem e complementam os lugares concretos onde ainda vivemos, trabalhamos e empreendemos fisicamente. Por isso, aumentaram a importância dos locais em relação ao espaço. No futuro, mas não em poucos anos, pode até ser que a rede englobe todos os lugares; talvez todos participem das redes no lugar onde quiserem em pé de igualdade para gerar e capturar o mesmo valor que seria gerado e capturado caso estivesse num determinado local físico. Para isso, a tecnologia precisará proporcionar uma experiência em rede muito mais rica do que temos hoje. Até lá, ainda vamos conviver com muitos picos.
1.3 – Ser humano digital: uma nova configuração psíquica
Novas formas de organização social e novos espaços de vida geram profundas alterações nos estilos de agir e de ser de seus contemporâneos. As comunidades feudais do século XVIII deram lugar às modernas sociedades industriais e os homens, mulheres e crianças da época sofreram transformações que deram origem ao indivíduo dos séculos XIX e XX. Esse mesmo indivíduo agora pode estar tendo sua organização interna modificada a ponto de se tornar algo diferente e ainda sem nome de batismo. Provisoriamente neste texto iremos denominá-lo de “ser humano digital”, uma referência à ausência de materialidade que é a condição necessária para habitar o ciberespaço.
O ser humano digital é reconhecido por um perfil em uma rede social, um endereço de correio eletrônico, um nickname em uma sala de bate-papo, um avatar em um mundo 3D. Cada vez menos é reconhecido por sua aparência física. Não importa o lugar físico em que o corpo reside, o ser humano digital habita comunidades virtuais e outros espaços dependendo de suas relações em rede. Está em vários espaços ao mesmo tempo, e, assim como não está mais preso ao corpo nem ao espaço físico, também não está mais preso ao tempo, pois agora se comunica e interage também de forma assíncrona. Se na sociedade industrial o tempo era bem dividido em horas para trabalho, lazer e repouso, agora temos outra noção de tempo e de organização das atividades cotidianas.
FICÇÃO CIENTÍFICA: O SER HUMANO E OS SISTEMAS COMPUTACIONAIS DO FUTURO
Filmes de ficção científica apresentam uma visão sobre o futuro da sociedade com base nos desejos e medos de uma época em relação a uma nova tecnologia ou descoberta científica. Um tema recorrente é a relação dos seres humanos com as máquinas e os sistemas computacionais. Vários filmes apresentam os computadores como um instrumento a serviço da humanidade de forma semelhante à situação contemporânea, como em “Guerra nas Estrelas” e “Minority Report”. Contudo, muitos filmes apresentam uma visão do ser humano ameaçado pelas máquinas ou em guerra com elas: “O Exterminador do Futuro”, “Matrix”, “Eu, Robô”, “2001: Uma Odisseia no Espaço”. Alguns filmes projetam o ser humano como escravo das máquinas: “THX 1138”. No extremo, ocorre a extinção da espécie humana resultando num mundo habitado apenas por máquinas, como em “Inteligência Artificial”. Outros abordam os desdobramentos da simbiose entre o ser humano e as tecnologias por meio de próteses mecânicas e biológicas: “Blade Runner”, “RoboCop”, “O homem bicentenário”. Alguns imaginam o ser humano usando avatares para atuar até mesmo no mundo físico, como “Substitutos” e “Avatar”. Há também filmes que problematizam a indiscriminação entre a realidade física e a virtual, como nos filmes “Matrix”, “O vingador do futuro” e “A Origem”. Para você, daqui a 100 anos, como será o ser humano do futuro e como ele se relacionará com as tecnologias? Como seria o roteiro do seu filme?
Os grandes centros urbano-industriais exerceram uma influência modernizadora sobre os comportamentos e os modos de ser de seus habitantes. O cotidiano nesses novos espaços introduziu novos elementos: excesso de estímulos, divisão entre locais de trabalho e de moradia, separação entre os domínios do público e do privado, diferentes círculos de conhecimento, racionalidade, frieza, anonimato, reserva, isolamento, cálculo, mobilidade, pontualidade etc. Em função dessas novidades do cotidiano, emergiram novos comportamentos, novos traços psíquicos, transformações internas de cunho individual. A nova ordem social promoveu diversas transformações psicológicas, deu origem a uma nova organização subjetiva.
A história se repete com a Revolução da Internet. As novas formas de organização social (em rede) e o novo espaço (ciberespaço) geraram alterações não somente nos comportamentos, mas também na constituição psíquica dos homens, mulheres e crianças dos nossos dias. É farta a literatura sobre os novos comportamentos e os efeitos do uso da Internet: novas formas de pensar, de escrever, de aprender, de se relacionar, de amar, de adquirir autoconhecimento, entre tantas outras mudanças de comportamento notáveis nos usuários da Internet. Analistas da nova ordem social apontam, também, a emergência de comportamentos vistos como problemáticos: o estresse tecnológico, o excesso de informação, o uso excessivo da Internet (por alguns visto como uma nova forma de vício), o sexo virtual (percebido como desregramento social), o isolamento e a depressão. Alguns assinalam, ainda, a existência de conflitos entre o prazer gerado pela vida online e a produtividade que dela se espera.
A Revolução da Internet desencadeou um processo de transformações, ainda em curso, que está gerando o ser humano do século XXI. Está emergindo um novo modelo de organização psíquica em decorrência do uso da rede. O ser humano do século XXI pensa, age, sente, faz uso da linguagem, se relaciona consigo próprio e com os outros, e percebe o mundo de forma diferente de seus predecessores. Os autores que acompanham com horror as mudanças sociais e psíquicas frequentemente partem de teorias tradicionais e, assim sendo, podem facilmente interpretar essas mudanças como patologias ou desvios ou, ainda, como formas de esvaziamento de algo que deveria estar lá. Já outros autores, que têm uma visão menos preconceituosa em relação a essas transformações, falam do surgimento de um novo modo de ser. Por exemplo, vivenciamos uma mudança na noção de privacidade, tão discutida nestes dias em que encontramos câmeras por todos os lados, em que reality shows se tornaram programas campeões de audiência em diversos canais. A grande exposição da intimidade feita voluntariamente – “No que você está pensando agora?” (Facebook), “Share what’s new…” (Google+), “Brodcast Yourself” (YouTube), ou a conversação pública em salas de bate-papo no início da popularização da internet (ainda que naquela época a exposição fosse feita com a proteção do anonimato) – é vista por alguns como ingenuidade ou exibicionismo, mas, por outro lado, é preciso considerar que essa exposição é uma importante fonte de autoconhecimento.
Os estudos da subjetividade contemporânea apontam numa mesma direção: tal como a Revolução Industrial deu origem a um longo processo de mudanças que resultou na emergência do homem do século XX, a Revolução da Internet desencadeou um processo de transformações, ainda em curso, que está gerando o homem do século XXI.
GERAÇÕES SEPARADAS PELA REVOLUÇÃO DA INTERNET
A revolução da Internet é apontada como fator decisivo para diferenciar as atuais gerações em nossa sociedade (Tapscott, 1997). Dentre as gerações pós Revolução Industrial estão as denominadas Geração Baby Boomers e Geração X. A Geração de Baby Boomers inclui os nascidos entre o final da Segunda Guerra Mundial e o início dos anos 60, cresceram em uma época de grandes mudanças sociais e culturais, dentre as quais estão o impacto da televisão e a valorização da juventude. Rejeita os valores tradicionais e acredita ser agente de mudança, tendo realizado movimentos de protesto que surgiram em diversos países no final da década de 1960. A Geração X compreende os nascidos entre o início dos anos 1960 e o final da década de 1970, é uma geração de transição que viu acontecer a popularização do computador pessoal, videogames e o início da revolução da Internet, mas que, no período de formação escolar, ainda pesquisava em bibliotecas e realizava trabalhos escritos à mão.
Em função dos computadores em rede, nos deparamos com a Geração Digital (também conhecida como Geração Y), e a Geração da Internet (também conhecida como Geração Z). Estas gerações são as primeiras a crescer em um ambiente digital e a utilizar a Internet para obter informações e realizar pesquisas em idade escolar. Foram moldadas pelo ciberespaço, onde se acostumaram a viver desde muito cedo, adaptaram-se às novas tecnologias de forma mais rápida que as gerações anteriores porque não tiveram que enfrentar mudanças de hábito e paradigma causadas pelos computadores em rede. Os jovens dessas gerações leem e escrevem muito, seja em rede social, correio eletrônico, mensagem instantânea, microblog, blog, wiki dentre outros meios. Buscam informações incessantemente, não estão mais restritos a livros e revistas, e se acostumaram a investigar as informações antes de tomarem decisões sobre qualquer assunto. Mantêm contato permanente com amigos, realizam atividades colaborativamente, participam das redes sociais, opinam sobre os mais diversos assuntos, compartilham arquivos, jogam em grupo. Estão acostumadas a conviver com pessoas de todos os tipos, abraçam as diferenças de sexo, raça, religião, nível cultural e socioeconômico, ou capacidade física. Não possuem uma noção rígida de limite de tempo bem como de linhas divisórias entre espaço para lazer, trabalho e estudo. Gostam de integrar a vida doméstica à profissional, podem jogar no trabalho e trabalhar em casa, gostam de horários flexíveis e remuneração baseada no desempenho. Rejeitam hierarquias e burocracia. Querem velocidade de resposta, estão sempre atualizados com as novidades, gostam de criar. Valorizam a liberdade de escolher o que querem fazer, o que experimentar, onde trabalhar, o que consumir, o que querem ser. Para se relacionar com as novas gerações é preciso franqueza no discurso e nas atitudes.
Retornemos à passagem do século XIX para o XX para tentarmos entender melhor como isso aconteceu naquela época. Com a mudança da organização social, homens e mulheres que saíram das comunidades características da sociedade feudal e se mudaram para as grandes cidades típicas da sociedade industrial, experimentaram uma grande sensação de liberdade e, ao mesmo tempo, de desorientação por perderem as amarras sociais (principalmente aquelas que controlavam e continham seus desejos individuais). Isso, no entanto, foi passageiro, na medida em que outras amarras, tanto internas (como, por exemplo, o superego) quanto externas (como as várias formas de regulação da vida na nova sociedade) foram construídas ao longo do final do século XIX e, principalmente, do século XX. Algo semelhante está ocorrendo agora em decorrência dos impactos da popularização da internet. Estamos perdendo nossas antigas formas de nos organizarmos, tanto externa quanto internamente. Os sólidos referenciais do período moderno, que até pouco tempo refreavam nossos desejos e serviam de âncoras para a nossa organização psíquica, estão deixando de existir e novos referenciais ainda estão em construção. Estamos, portanto, novamente enfrentando um período de muita sensação de liberdade e, também, de muita desorientação e muita experimentação. O importante é reconhecermos que, de todo este processo de mudança, está emergindo um sujeito diferente daquele indivíduo moderno, estudado pelas teorias psicológicas dos séculos XIX e XX. Um sujeito cuja configuração psíquica ainda precisa ser mais estudada e melhor compreendida.
1.4 – Sistemas Colaborativos: ciberespaços para o trabalho em grupo
“Sistemas Colaborativos” é a tradução adotada no Brasil para designar ambos os termos “groupware” e “CSCW” (Computer Supported Cooperative Work). Muitos consideram groupware e CSCW como sinônimos; outros preferem reservar a palavra groupware para designar especificamente os sistemas computacionais usados para apoiar o trabalho em grupo, e a palavra CSCW para designar tanto os sistemas (CS) quanto os efeitos psicológicos, sociais e organizacionais do trabalho em grupo (CW). Ambos os termos, cunhados mesmo antes da web, estão relacionados a sistemas computacionais para apoiar a colaboração.
ORIGEM DOS TERMOS “GROUPWARE” E “CSCW”
O termo “groupware”, cunhado em 1978 nas notas de pesquisa de Peter e Trudy Johnson-Lenz, foi publicado em 1979 num artigo informal e definido em 1981 como sendo: “processos intencionalmente de grupo mais software para dar suporte” (Johnson-Lenz e Johnson-Lenz, 1998). Esta definição é muito restrita e focaliza apenas os processos de trabalho em grupo. Uma década depois, Ellis e colaboradores redefiniram o termo: “sistema baseado em computador para dar suporte a grupos de pessoas engajadas numa tarefa comum (ou objetivo) e que provê uma interface para um ambiente compartilhado” (Ellis et al., 1991, p.40).O termo “CSCW” foi cunhado por Irene Greif e Paul Cashman em 1984 num workshop para discutir o papel da tecnologia no ambiente de trabalho (Grudin, 1994). Naquela época, e ainda nos dias de hoje, identifica-se que é necessário compreender melhor como as pessoas trabalham em grupo para desenvolver tecnologias adequadas à colaboração. A área de CSCW surgiu como um esforço dos tecnólogos para apreender com a Psicologia, Sociologia, Antropologia, Educação, Economia e outras áreas que investigam a atividade em grupo.
Cada sistema colaborativo constitui um ciberespaço específico. Quem projeta e desenvolve sistemas colaborativos tem o poder de criar novas formas de trabalho e interação social, novos palcos para a convivência humana. Não basta conhecer bits e bytes, não é mais suficiente saber engenhar um software, é preciso entender também de gente, conhecer as características e necessidades do novo ser humano digital e as novas formas de trabalho e organização social.
Um sistema colaborativo não deve se restringir ao comando e controle da realização das tarefas, como é a forma típica de trabalho na linha de montagem industrial clássica. Um sistema mais adequado à nova sociedade deve ser concebido para ser um espaço a ser habitado. Deve ser condizente com as necessidades das novas gerações, formada por jovens que desejam colaborar, interagir e compartilhar, sem uma hierarquia rígida, que tenha flexibilidade de horário e lugar, que favoreça a criação e a informalidade.
Por exemplo, na década de 1990, pesquisadores na área de Sistemas Colaborativos buscavam compreender porque os sistemas de workflow fracassavam. Naquela época, aqueles sistemas enfocavam a eficiência e eficácia das atividades descritas formalmente nas organizações (conhecimento explícito): tarefas, técnicas e fluxo de trabalho, hierarquia e treinamento. O trabalhador tinha pouca oportunidade para colaborar e aprender com os outros; era esperado que o usuário realizasse a tarefa e a encaminhasse adiante o mais rápido possível. Os sistemas eram usados predominantemente para o controle do trabalho, o que é típico da sociedade industrial. Com o amadurecimento da área e os avanços tecnológicos, os sistemas de workflow foram sucedidos pelos sistemas BPMS (Business Process Management System – Sistema para a Gestão de Processos de Negócio), que dão suporte também ao relacionamento entre os usuários, enfocam a aprendizagem organizacional, possibilitam a formação de comunidades de prática, redes informais, valorizam o saber-fazer e as práticas de trabalho (conhecimento tácito). Essas características são mais condizentes com a nova sociedade, e assim esse tipo de sistema tem sido implantado com mais sucesso nas organizações.
É útil aprender com o passado para que possamos projetar melhor os novos sistemas colaborativos que terão implicações tanto para o trabalho quanto para a esfera privada. O profissional desta área deve estar preparado para desenvolver sistemas colaborativos que sejam condizentes com os novos espaços, modos de produção e estilos de vida instaurados pela Revolução da Internet. Os sistemas colaborativos que vierem a ser criados realimentarão o ciberespaço com a inauguração de novas formas de trabalho e de relacionamento, que, por sua vez, resultarão em novas demandas e transformações psicológicas do ser humano digital.
Sistemas Colaborativos passaram a ser tema de interesse de vários pesquisadores contemporâneos. No Brasil, em função da necessidade de compreender como projetar sistemas para promover novos espaços sociais para o trabalho, a partir de 1996 foi introduzida a disciplina “Sistemas Colaborativos” (inicialmente denominada “Sistemas Cooperativos”) no currículo de referência da Sociedade Brasileira de Computação para os cursos de Graduação em Computação. Permanece como disciplina no atual currículo de referência dos cursos de Bacharelado em Sistemas de Informação que vigora desde 2003. O presente livro, elaborado para ser livro-texto dessa disciplina, indica o crescente interesse e relevância desse tema tão atual.
É preciso deixar passar um tempo para conseguirmos obter uma visão do conjunto de transformações decorrentes da Revolução da Internet. Ainda é difícil separar o que é velho do que é novo, superar os preconceitos às mudanças e a nostalgia em relação ao passado. Assim como o distanciamento emocional e temporal fizeram surgir observações e interpretações mais precisas após a Revolução Industrial, é preciso continuar a estudar as mudanças decorrentes da Revolução da Internet. Sem conhecermos as características da subjetividade contemporânea, corremos o risco de desenvolvermos sistemas inadequados. E nós, atores no processo de desenvolvimento de Sistemas Colaborativos, além de vivenciar e analisar as mudanças, temos potencial para influenciá-las, o que nos coloca como protagonistas da história contemporânea.
LEITURAS RECOMENDADAS
- A Sociedade em Rede (Castells, 1999). Discute a sociedade em rede, explica os efeitos das tecnologias de informação e comunicação no mundo contemporâneo. O autor é um sociólogo, e este livro é um dos mais vendidos e citados, sendo um dos pesquisadores mais importantes deste início do século.
- Revoluções tecnológicas e transformações subjetivas (Nicolaci-da-Costa, 2002). Nesse artigo são discutidas as transformações psicológicas decorrente da Revolução da Internet. É um dos artigos mais citados da autora. Serviu de texto base para a escrita do presente capítulo.
EXERCÍCIOS
1.1. Olhe ao seu redor e identifique quantos computadores você tem, e quais os objetos que você usa que já estão com chip. Liste também os computadores que você usa em atividades cotidianas, como o terminal do supermercado e do banco.
1.2. Cite indícios de que estamos vivenciando um momento revolucionário.
1.3. Liste as características do novo ser humano digital.
1.4. Considerando o período de transição em que vivemos, decorrente da Revolução da Internet, discuta a concepção de sistemas colaborativos projetados para uma Sociedade Industrial em comparação com sistemas que sejam projetados para a Sociedade em Rede. Especificamente, discuta como deve ser projetado um sistema para dar suporte à educação nas diferentes perspectivas: para uma sociedade industrial e para a sociedade em rede.
APRESENTAÇÃO [conteúdo auxiliar]
REFERÊNCIAS
↑ ↑ CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. [Google Livros] [Amazon]
↑ DRUCKER, P.F. O melhor de Peter Drucker: obra completa. São Paulo: Nobel, 2002. [Google Livros] [Amazon]
↑ ELLIS, C. A.; GIBBS, S. J.; REIN, G. Groupware: some issues and experiences. Communications of the ACM, v. 34, n. 1, p. 39-58, jan. 1991. [PDF]
↑ GRUDIN, J. Computer-Supported Cooperative Work: History and Focus. Computer (IEEE), v. 27, n. 5, p. 19-26, maio 1994. [PDF]
↑ JOHNSON-LENZ, P.; JOHNSON-LENZ, T. Groupware: coining and defining it. ACM SIGGROUP Bulletin, v. 19, n. 3, p. 58, dez. 1998.
↑ MEIRA, S. Mundo: plano ou picos? Disponível online no blog “Dia a Dia, Bit a Bit” em três postagens [1] [2] [3]: <http://boletim.de/silvio/mundo-plano-ou-picos-1/> (3 nov. 2010), <> (4 nov. 2010), e <http://bit.ly/brsjB3> (8 nov. 2010).
↑ NICOLACI-DA-COSTA, A.M. Revoluções tecnológicas e transformações subjetivas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v.18, n.2, p. 193-202, 2002. [PDF]
↑ TAPSCOTT, D. Growing Up Digital. NovaYork: McGraw-Hill, 1997. [Google Livros] [Amazon]
↑ TOFLER, A. A terceira Onda. 1980.
AUTORES
Ana Maria Nicolaci-da-Costa
PhD em Psicologia. Professora associada da PUC-Rio. Pesquisa os impactos psicológicos gerados pelas transformações sociais produzidas pelas novas tecnologias digitais, principalmente pela Internet e pela telefonia celular. Também se dedica ao desenvolvimento de métodos qualitativos de pesquisa, entre os quais se destaca o MEDS (Método de Explicitação do Discurso Subjacente). É membro do Conselho Diretor do Instituto de Mídias Digitais da PUC-Rio e integra a equipe de pesquisadores do INCT em Web Science.
[Currículo Lattes ↗]
Mariano Pimentel
Doutor em Informática. Professor do Departamento de Informática da UNIRIO. Realiza pesquisas em Sistemas de Informação com ênfase em: Sistemas para Colaboração, Tecnologias de Informação e Comunicação, e Sistemas para Educação a Distância. Coordena o grupo de pesquisa ComunicaTEC. Agradecimentos: Recebe bolsa de fomento UAB. Agradece aos (ex-)orientandos que o apoiaram na elaboração de imagens e de textos dos capítulos autorados, especialmente: Leandro D. Calvão e Wallace C. Ugulino.
[Currículo Lattes ↗]